Marc Kish
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Escrito em co-autoria com Tom Lowe QC, Wilberforce Chambers
O Privy Council de Londres, tribunal de última instância para as Ilhas Cayman (e para os territórios ultramarinos do Reino Unido e dependências da Coroa), proferiu a muito aguardada decisão sobre a interpretação do artigo V da Convenção de Nova York.
No âmbito do caso Gol Linhas Aéreas SA (anteriormente VRG Linhas Aéreas SA) (Recorrida) v MatlinPatterson Global Opportunities Partners (Cayman) II LP e outros (Recorrentes) (Ilhas Cayman) [2022] UKPC 21, o Privy Council confirmou que a sentença arbitral da CCI obtida em favor da Gol Linhas Aéreas SA (Gol) no valor de R$92.987.672 (Sentença Arbitral) era exequível nas Ilhas Cayman e que os fundamentos pelos quais os recorrentes (Fundos MP) buscaram contestar a Sentença Arbitral já haviam sido arguidos (e desprovidos) pelas cortes brasileiras, razão pela qual não poderiam mais ser rediscutidos.
O Ogier atuou de forma bem sucedida pela Gol em conjunto com o advogado Tom Lowe QC do Wilberforce Chambers e os patronos brasileiros da Gol, Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr e Quiroga Advogados.
A decisão aborda questões importantes relativas à execução de sentenças arbitrais estrangeiras contestadas perante tribunais alienígenas e serão de interesse não só de todos os profissionais que atuam na área mas, especialmente, a litigantes brasileiros ou de países de civil law que visem executar sentenças de devedores com patrimonio nas Ilhas Cayman.
Para um resumo detalhado dos antecedentes fáticos do caso, remetemos o leitor ao artigo escrito sobre a decisão proferida pela Cayman Islands Court of Appeal (CICA). [1] Em síntese, o primeiro e o segundo recorrentes (os MP Funds) são, respectivamente, sociedades registradas nas Ilhas Cayman e Delaware e que, juntas, atuam como um fundo de investimento de capital privado especializado em "distressed investing". O terceiro recorrente é o general partner (General Partner) das duas sociedades. A Gol é uma empresa de um grupo aéreo brasileiro que realiza negócios sob o nome de Gol Linhas Aéreas.
A disputa entre a Gol e os Fundos MP surgiu no âmbito do Share Purchase and Sale Agreement datado de 28 de março de 2007 (PSA) para a venda de ações da empresa que operava a Gol. Os Fundos MP não eram partes no contrato e não assinaram o PSA, mas foram signatários de um adendo de não concorrência que incorporava seus termos. O PSA, por sua vez, continha uma convenção de arbitragem que previa que todas as disputas decorrentes ou relacionadas ao PSA deveriam ser resolvidas por arbitragem, cujo idioma seria o português e a sede a cidade de São Paulo. A convenção de arbitragem também era regida pelas leis brasileiras.
Sendo assim, a Gol instaurou uma arbitragem não apenas contra os vendedores constantes do PSA, mas também contra os Fundos MP, com base, inter alia, em uma fraudulenta manipulação dos valores correspondentes ao capital de giro da empresa e por meio do qual o preço de compra das respectivas ações foi ajustado no PSA.
Inicialmente, os Fundos MP contestaram a competência dos árbitros sob o fundamento de que não eram partes do PSA. Esse ponto foi rejeitado pelo tribunal arbitral que, por meio de sentença arbitral parcial, entendeu que os Fundos MP teriam aderido à convenção arbitral ao assinarem o adendo de não concorrência. Os Fundos MP, por sua vez, sustentaram que qualquer submissão à arbitragem deveria se limitar ao acordo de não concorrência. A Gol alegou que os Fundos MP deveriam ser responsabilizados integralmente eis que utilizaram indevidamente a sua personalidade jurídica para perpetuar o ilícito.
Em setembro de 2010, o tribunal arbitral prolatou sentença final que responsabilizou os Fundos MP por dolo de terceiro nos termos do artigo 148 do Código Civil Brasileiro. No entanto, o referido dispositivo jamais havia sido mencionado pelas partes ou pelo tribunal arbitral ao longo do processo. O tribunal, por sua vez, prolatou decisão com base na máxima "iura novit curia", que significa, na prática brasileira, que o juiz (ao contrário das partes) é responsável por identificar os fatos e aplicar o direito.
Os Fundos MP requereram a anulação da Sentença Arbitral no judiciário brasileiro sob os argumentos de que (i) não havia convenção arbitral, (ii) a Sentença Arbitral estava fora do escopo da convenção arbitral da qual eram partes (ou seja, a cláusula de não concorrência) e os termos de referência da arbitragem; e (iii) houve violação do devido processo legal em vista da inadvertida aplicação do artigo 148 do Código Civil. Como observado pelo Privy Council, os mesmos fundamentos foram, posteriormente, utilizados perante a corte das Ilhas Cayman para contestar a execução da sentença arbitral com base no artigo V da Convenção de Nova York. O Tribunal de Justiça de São Paulo, tanto em primeira quanto em segunda instância, julgou improcedente a ação anulatória ajuizada pelos Fundos MP. Os subsequentes recuros às cortes superiores brasileiras também foram desprovidos, tendo o processo transitado em julgado após 10 anos de tramitação.
A Gol buscou e obteve, liminarmente, autorização para executar a Sentença Arbitral contra os Fundos MP e o General Partner nas Ilhas Cayman. No entanto, a ordem foi posteriormente revogada pela juíza de primeira instância Ingrid Mangatal.
Os Fundos MP contestaram a execução da Sentença Arbitral perante a juíza Mangatal por vários motivos, incluindo que não eram partes da convenção de arbitragem no âmbito do PSA e que o tribunal arbitral havia decidido o caso com base em dispositivo legal (artigo 148 do Código Civil) que nunca havia sido arguido ou debatido, e que isso ofenderia o princípio do devido processo legal.
A Gol alegou que os Fundos MP estavam vinculados às decisões judiciais brasileiras e que as questões por eles levantadas já haviam sido decididas e, portanto, não poderiam ser rediscutidas. Em primeira instância, a impugnação dos Fundos MP foi acolhida, tendo sido julgada improcedente a execução da Sentença Arbitral e revogada a decisão liminar anteriormente proferida. A CICA, por sua vez, proveu integralmente o recurso da Gol, entendendo, inter alia, que os Fundos MP não poderiam contestar, nas Ilhas Cayman, as decisões judiciais brasileiras sobre a Sentença Arbitral.
Os Fundos MP recorreram ao Privy Council com vistas a, novamente, contestar a execução da Sentença Arbitral. As questões levadas ao Privy Council no âmbito do recurso foram se a CICA teria errado ao: (i) considerar que os Fundos MP estavam impedidos, por força da coisa julgada, de resistir à execução por suposta ausência de convenção arbitral (Artigo V(1)(a) da Convenção de Nova York); (ii) rejeitar o argumento de violação ao devido processo legal nos termos do Artigo V(1)(b) e/ou Artigo V(2)(b) da Convenção de Nova York; e (iii) considerar que a Sentença Arbitral não extrapolou os limites da convenção arbitral ou os termos de referência da arbitragem (Artigo V(1)(c) da Convenção de Nova York).
1. Primeira questão: validade da convenção arbitral e a impossibilidade de rediscutir o tema
Conforme mencionado acima, os Fundos MP resistiram à execução da Sentença Arbitral por, supostamente, não terem concordado em submeter a disputa à arbitragem eis que não seriam partes da convenção arbitral. A Gol alegou que esta questão já havia sido discutida e decidida contrariamente aos Fundos MP pelos tribunais brasileiros, razão pela qual a sua rediscussão não seria possível por força da coisa julgada.
O Privy Council ressaltou que a coisa julgada tem como base importante política pública de pôr fim ao litígio e garante que as mesmas partes não litiguem a mesma questão duas vezes. Utilizando o precedente criado em Carl Zeiss Stiftung v Rayner & Keeler Ltd (No 2) [1967] 1 AC 853, o Privy Council entendeu que o instituto da coisa julgada pode ser estendido à uma sentença estrangeira. Para que seja caracterizada a coisa julgada, por sua vez, três requisitos devem ser satisfeitos com relação à sentença: (i) a sentença deve ser (a) proferida por tribunal estrangeiro que tenha competência para tanto, e (b) o mérito deve ter sido apreciado; (ii) as partes nas duas ações devem ser as mesmas; e (iii) as questões decididas pela corte estrangeira devem ser as mesmas trazidas ao tribunal local.
O Privy Council observou que uma sentença estrangeira que satisfaça os requisitos estabelecidos pelo common law, não pode ser invalidada simplesmente por conter suposto erro de fato ou de direito, sendo, portanto, irrelevante se o tribunal local consideraria o fundamento da sentença estrangeira como passível de crítica ou como “manifestamente equivocado”.
Com relação aos requerimentos acima, o Privy Council concluiu que:
2. Segunda questão: devido processo legal
O segundo fundamento utilizado para resistir a execução da Sentença Arbitral baseou-se em suposta violação do contraditório e do devido processo legal eis que, nos termos do Artigo V(1)(b) da Convenção de Nova York e da sessão 7(2)(c) da Lei de Execução de Sentença Arbitral 1975 (atualização de 1997) das Ilhas Cayman, teriam sido "[impossibilitados] de apresentar seus argumentos".
Segundo os Fundos MP, a violação aos referidos dispositivos teria ocorrido porque o Tribunal Arbitral teria decidido o caso com base em artigo de lei não debatido pelas partes durante o processo, o que violaria a ordem pública das Ilhas Cayman e, portanto, impediria a execução da Sentença Arbitral. Apesar de a juiza de primeiro grau ter inicialmente concordado com esse entendimento, a Corte de Apelação rejeitou a contestação oposta à execução da Sentença Arbitral.
O Privy Council, por sua vez, não apenas menteve o entendimento da CICA como, essencialmente, estabeleceu um standard internacional sobre como deve ser feita a análise de aplicação do devido processo legal. Tal standard pode ser desenvolvido e aplicado em qualquer jurisdição.
No caso concreto, o Privy Counsil ressaltou que, antes de analisar se houve ou não violação deste princípio, foi necessário analisar o sistema jurídico como um todo e identificar os parâmetros que a corte deveria utilizar para responder a essa questão. O Privy Council, portanto, realizou uma profunda análise comparativa dos standards de devido processo legal pelos quais as sentenças arbitrais estrangeiras estão submetidas em diversas jurisdições (muito embora tenha ressaltado que há poucas decisões sobre a questão no Reino Unido). Após este exercício, o Privy Council concluiu que:
No contexto do processo em questão, o Privy Council concordou que decidir um caso com base em fato ou prova que uma parte não tenha sido informada ou dada a oportunidade de se manifestar parece ser fundamentalmente injusto. No entanto, saber se o mesmo entendimento deve ser aplicado à fundamentação legal utilizada por outro tribunal não é algo simples de ser identificado. A questão, portanto, deve ser analisada em seu contexto. Neste processo, o caso foi iniciado no Brasil, uma jurisdição de direito civil onde as cortes e tribunais têm uma abordagem mais proativa na aplicação da lei, refletida nas doutrinas do “iura novit curia” (o tribunal conhece a lei) e “da mihi facta, dabo tibi ius” (dê-me os fatos e eu lhe darei o direito). Embora sob a abordagem brasileira, os julgadores não possam ir além das alegações de fato feitas e da tutela reivindicada pelas partes, eles têm o direito de adotar fundamentação jurídica diferente daquelas alegadas pelas partes.
O Privy Council não se convenceu de que a omissão do tribunal arbitral em intimar os Fundos MP a se manifestarem sobre se os fatos alegados pela Gol se enquadravam no artigo 148 do Código Civil constituía uma violação processual tão grave a ponto de justificar a inexecução da Sentença Arbitral. Afinal:
Com relação ao argumento de que a execução da Sentença Arbitral seria contrária à ordem pública das Ilhas Cayman, o Privy Council entendeu não ser o caso. Isto porque, para um tribunal inglês ou caymaniano considerar um julgado contrário à ordem pública para fins de inexecução de sentença arbitral estrangeira já confirmada pelas cortes locais, as quais possuem responsabilidade primária de garantir a integridade do processo arbitral, deve haver fato muito sério, o que não se verificou in casu.
3. Terceira questão: extensão da convenção arbitral
Os Fundos MP também apresentaram dois argumentos para contestar a execução da sentença arbitral com base no art. V(1)(c) da Convenção de Nova York. Primeiro, eles alegaram que o objeto da Sentença Arbitral estava além da extensão da convenção de arbitragem eis que, para os Fundos MP, esta se limitava ao acordo de não concorrência. O Privy Council considerou que essa questão já havia sido julgada pelas cortes brasileiras e, portanto, estaria preclusa. Com relação a este tópico, os Fundos MP também arguiram que a Sentença Arbitral não respeitou o que ficou definido nos termos de referência da arbitragem. Muito embora este ter sido um ponto não analisado pelo tribunais brasileiros, o Privy Council considerou que os termos de referência, elaborados no início da arbitragem, não podem ser lidos como forma de vincular as partes ou o tribunal arbitral a fundamentos jurídicos específicos, muito menos como forma de limitar as fontes de direito a serem utilizadas. Os termos de referência receberam, portanto, uma construção aberta que vai ao encontro do propósito da arbitragem, que é justamente fornecer um meio flexível e eficaz de resolver disputas e fornecer reparação.
Em conclusão, o Privy Council considerou que a CICA estava correta ao concluir que nenhum dos fundamentos invocados pelos Fundos MP justifica a recusa à execução da Sentença Arbitral nos termos da seção 7 da Lei de 1975.
O Ogier possui experiente equipe na área de resolução de disputas offshore, que está cada vez mais envolvida em arbitragens domésticas e que, regularmente, lida com ações de execução nas Ilhas Cayman e nas Ilhas Virgens Britânicas em especial. Para obter mais informações sobre esta decisão ou assistência na execução de sentenças arbitrais, entre em contato com seu contato habitual do Ogier ou com um dos autores deste artigo.
[1] Cayman Islands Court of Appeal enforces foreign arbitral award in favour of Brazilian airline
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This client briefing has been prepared for clients and professional associates of Ogier. The information and expressions of opinion which it contains are not intended to be a comprehensive study or to provide legal advice and should not be treated as a substitute for specific advice concerning individual situations.
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